A cristandade é um fascinante objeto de estudo pelos céticos. Poucas religiões no mundo erraram tanto, e ainda assim, cresceu e se tornou uma das maiores religiões.
Várias foram as vezes que a igreja cristã, especialmente a católica, cometeu erros. O celibato, o sexismo, a pedofilia, a avareza e a vaidade são os males mais presentes na memória popular, mas há outros fatos cometidos pela igreja que lhes são muito mais graves e caros, pelos quais a instituição não poupa esforços para deixa-los no esquecimento. Um desses fatos é a famigerada Inquisição da igreja católica.
Tudo começou em 1484, quando o papa Inocêncio VIII declarou em uma bula papal:
“Tem chegado a nossos ouvidos que membros de ambos os sexos não evitam manter relações com anjos, íncubos e súcubos malignos, e que por meio de suas feitiçarias, palavras mágicas, amuletos e conjuros eles sufocam, extinguem e abortam os filhos das mulheres, além de gerar muitas outras calamidades.”
Depois disso, Inocêncio nomeou Henry Kramer e James Sprenger como inquisidores para investigar as ditas “depravações”, e eles produziram um livro chamado “Malleus maleficarum”, ou, Martelo das bruxas. Um guia prático para obtenção de confissões através de torturas. Com o livro nas mãos e o apoio do papa Inocêncio, os inquisidores se multiplicaram por toda Europa, a fim de expulsar os demônios do mundo.
Todos os custos da investigação, julgamento e execução eram pagos pela acusada ou seus parentes. Até as diárias dos detetives contratados, a alimentação dos guardas, os gastos com os juízes, transporte e salários dos torturadores e do carrasco, assim como a lenha e a corda utilizados na execução, tudo era pago pelas vítimas. Além das despesas pagas, os membros do tribunal ganhavam uma gratificação para cada feiticeira queimada, e o que sobrava dos bens e propriedades das ditas, bruxas, era dividido entre a Igreja e o Estado.
Como cada bruxa torturada era obrigada a entregar outras bruxas, o número de julgamentos e execuções cresceu rápida e exponencialmente.
A inquisição da igreja católica se estendeu pelos séculos XV, XVI, XVII e final do século XVIII. Não se sabe, ao certo, quantas pessoas foram assassinadas, mas estima-se que, centenas de milhares ou até milhões.
Mas em 1998, 500 anos depois portanto, o papa João Paulo II solicitou uma consulta à historiadores contratados pelo Vaticano para avaliar a gravidade dos fatos e se pronunciar a respeito. O estudo, um relatório de 800 páginas redigido pelo professor Agostino Borromeo e publicado pelo Vaticano, concluiu que os julgamentos não eram tão brutais como se acreditava e que o número de torturas e execuções cometidas não foram tantos quantos dizem os livros de história.
Após a publicação do estudo, relativizando e menosprezando as atrocidades cometidas na Inquisição, o papa João Paulo II, em uma conferência menor e interna, pediu perdão pelos abusos, repito, apenas pelos abusos, cometidos nos tribunais da inquisição. Não houve, e não há até os dias atuais, um reconhecimento e retratação pela Inquisição em si.
Durante uma coletiva de imprensa o cardeal Georges Cottier, disse:
“Não se pede perdão por imagens difundidas pela opinião pública, que tem a ver mais com o mito do que com a realidade.”
É improvável, e bastante lamentável, que os historiadores contratados pelo Vaticano tenham tido acesso às publicações do padre jesuíta, Friedrich von Spee, encarregado de ouvir as confissões das pessoas acusadas de bruxaria na Alemanha. Vejamos o que ele disse em seus relatos.
Os príncipes pressionavam os juízes para julgarem as bruxas e os juízes encontravam um jeito de atender os príncipes, mesmo sem evidências.
A presunção de culpa se dava pelos dilemas:
Se a acusada levou uma vida má, deve ser culpada, porém, se levou uma vida boa, então trata-se de um disfarce para parecer virtuosa.
Se estava com medo da tortura, era prova segura, mas se não demonstra medo, isso também era prova porque fingiam inocência.
Qualquer acusação levantada por qualquer pessoa, dava aos investigadores a prova suficiente, distorcida ou não.
Não tinham direito a advogado ou a qualquer recurso de defesa, pois quem as defendesse era igualmente acusado de bruxaria.
As acusadas eram levadas a presença do júri para ouvir as acusações. Se confessavam, eram executadas, se apresentavam provas de inocência, voltavam para a prisão para repensar, porque eram bruxas obstinadas. Então, no dia seguinte retornavam ao tribunal para ouvir a ordem de tortura, como se nunca tivessem apresentado defesa.
Antes da tortura, seus corpos eram violados a procura de marcas e amuletos. Se durante a tortura contorciam as feições, diziam que estava rindo. Se desmaiavam, diziam que dormiam ou se auto enfeitiçavam.
As torturas prosseguiam, uma após a outra, até que confessassem ou morressem no processo. Se morriam, diziam que, morreu obstinada e que não queria se converter, ou ainda que o diabo quebrou o seu corpo para não ser revelado.
Entre os métodos utilizados na tortura, temos a descrição de alguns, feitas pelo padre Spee:
Fazer a acusada ingerir a força arenque cozido com sal e depois negar-lhe água;
Imersão da acusada em banhos de água escaldante com cal;
Fazer a acusada sentar-se em cadeira de ferro incandescente;
Calçar as acusadas com botas de couro ou ferro onde eram despejadas água fervente e chumbo derretido;
Despejar água na garganta junto com um pano para que engasga-se, que depois era puxado com força para fora dilacerando suas entranhas;
Prender um torno para comprimir o polegar e o dedão do pé até a raiz da unha;
Amarrar os membros da acusada e depois deixá-la cair para que os membros se deslocassem.
O padre von Spee morreu da peste antes de ser punido por seus relatos. Provavelmente por esse motivo os historiadores do papa não consideraram sua história.
Ciente desses fatos, façamos uma reflexão sobre o que disse o cardeal Georges Cottier.
Se imagens e mitos difundidos pela opinião pública não representam a verdade e portanto, não são merecedores atenção, onde mais poderíamos aplicar esse ensinamento?
“Sempre que lemos as histórias obscenas, as orgias voluptuosas, as execuções cruéis e torturantes, o espírito inexorável de vingança que impregnam mais da metade da Bíblia, seria mais coerente dizer que ela é a palavra de um demônio do que a palavra de Deus. Ela tem servido para corromper e brutalizar a humanidade.”
Thomas Paine
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